sábado, 4 de junho de 2022

QUEM É PAVLO SADOKHA? AS LIGAÇÕES À EXTREMA-DIREITA UCRANIANA O presidente da Associação de Ucranianos em Portugal foi assessor de um deputado do Svoboda, partido de extrema-direita, e organizou a entrega de mantimentos ao neonazi batalhão Sich, ao batalhão do ultranacionalista Sector Direito e ao neonazi batalhão Azov.

 


Pavlo Sadokha

QUEM É PAVLO SADOKHA? AS LIGAÇÕES À EXTREMA-DIREITA UCRANIANA

O presidente da Associação de Ucranianos em Portugal foi assessor de um deputado do Svoboda, partido de extrema-direita, e organizou a entrega de mantimentos ao neonazi batalhão Sich, ao batalhão do ultranacionalista Sector Direito e ao neonazi batalhão Azov.

12 MAIO 2022

Éo líder mais conhecido da comunidade ucraniana em Portugal e nas últimas semanas tornou-se presença assídua nos média portugueses. Mas quem é Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal? E, sobretudo, que ligações tem com a extrema-direita ucraniana?

Nasceu a 2 de fevereiro de 1970 em Lviv, na zona ocidental da Ucrânia, numa família com tradição patriótica e cujos familiares participaram na ultranacionalista Organização de Nacionalistas Ucranianos (OUN, sigla em inglês), de Stepan Bandera. Economista de formação, Pavlo Sadokha emigrou da Ucrânia para Portugal em 2001 e, anos depois, em 2008, juntou-se à Associação de Ucranianos em Portugal, uma das principais associações ucranianas e com relações próximas com a embaixada da Ucrânia em Portugal. Tornou-se presidente da associação em 2010.

Sadokha tem trabalhado na criação de boletins informativos e desenvolve atividades culturais, mas, pelo meio, estabeleceu ligações próximas com a extrema-direita ucraniana. Não parece ter qualquer pudor em demonstrá-lo nas redes sociais, nem em declarações políticas.

AS CARTAS EM DEFESA DE STEPAN BANDERA E DO SVOBODA

Em janeiro de 2010, o então presidente ucraniano, Viktor Yushchenko, atribuiu ao colaboracionista da Alemanha nazi Stepan Bandera (1909-1959) o título póstumo de Herói da Ucrânia. A decisão não foi, no entanto, recebida com bons olhos pelo Parlamento Europeu, que a 25 de Fevereiro de 2010 criticou duramente a decisão numa resolução.

“[O Parlamento Europeu] Lamenta profundamente a decisão do presidente cessante da Ucrânia, Viktor Yuschchenko, de conceder postumamente a Stepan Bandera, líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos, que colaborou com a Alemanha nazi, o título de ‘Herói Nacional da Ucrânia”, lê-se na resolução. “[O Parlamento Europeu] Espera, a este respeito, que a nova liderança ucraniana reconsidere essas decisões e mantenha o seu compromisso com os valores europeus.”

Foi o que acabou por acontecer. Pouco depois de ser eleito em 2010, o novo presidente, Viktor Yanukovych, declarou o título póstumo ilegal argumentando que Bandera nunca fora cidadão ucraniano, daí não o poder atribuir – a Ucrânia não existia como Estado independente até agosto de 1991. Foi um subterfúgio legal e resultou. Em abril de 2010, um tribunal confirmou a decisão e o título foi anulado poucos meses depois, já em 2011.

Uma série de líderes da diáspora ucraniana não gostou do posicionamento do órgão europeu. Um deles foi Pavlo Sadokha, o primeiro subscritor de uma carta aberta contra a resolução do Parlamento Europeu. “Como um dos mais brilhantes combatentes do Estado Independente e Conciliar da Ucrânia, [Stepan Bandera] é um símbolo da Ucrânia Independente”, lê-se na carta, assinada por líderes de associações ucranianas em Portugal, Alemanha, Itália, Espanha e Grécia. 

“É um herói não para uma parte da Ucrânia, mas para cada ucraniano consciente, independentemente do local de residência: no oeste ou no leste da Ucrânia, ou no exterior. Stepan Bandera e a Organização dos Nacionalistas Ucranianos, chefiada por ele, tornaram o nascimento do Estado ucraniano mais perto [de acontecer] do que qualquer outra pessoa, dando a coisa mais preciosa para este objetivo sagrado: as suas próprias vidas.”

Sadokha não se ficou pelas palavras de elogio a Bandera. O presidente da Associação de Ucranianos em Portugal fez parte de um grupo de ucranianos que, em outubro de 2019, visitou e prestou homenagem na campa do líder de extrema-direita ucraniano em Munique, na Alemanha. E nas suas redes sociais encontram-se fotografias dele a empunhar faixas com o rosto de Bandera. 

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Pavlo Sadokha campa
Pavlo Sadokha na campa do colaboracionista nazi Stepan Bandera em outubro de 2019

Não é o único. Vários membros da Associação de Ucranianos em Portugal têm fotos nas suas redes sociais em apoio a Stepan Bandera, imagens com a bandeira ultranacionalista vermelha e preta e a empunhar uma faixa do Sector Direito: Yuriy Kondra, Mykola Shevchyshyn, Mykola Shymonyak e Vitaliy Umanets. 

E, já depois da invasão russa, Roman Barchuk, de 25 anos e membro da associação desde 2014, defendeu na SIC Notícias, em meados de março, que a pulseira vermelha e preta que usava “representa as forças nacionalistas que depois da II Guerra Mundial lutaram pela independência da Ucrânia”. 

“O preto representa a terra e o vermelho o sangue que Putin tem tanto medo. São estas cores e são esta bandeira que em 2014 impediram o avanço das tropas russas no leste do país”, disse, numa referência aos batalhões ultranacionalistas, nomeadamente ao Sector Direito. “Terra” e “sangue” é uma adaptação da palavra de ordem nazi “solo e sangue”, usada pela OUN de Bandera. 

Sadokha também recusa o que os livros de História ensinam sobre Bandera. “Todas estas histórias de que foi colaborador da Alemanha nazi, que trabalhava com a Gestapo, não passam de propaganda russa. É igualmente como falam agora do [neonazi Movimento] Azov”, disse ao Setenta e Quatro Sadokha. “De certeza absoluta que a OUN não foi responsável por massacres. Não vou desculpar os ucranianos, porque não são santos, mas não foram eles que organizaram [os massacres], aliás, condenaram-nos. É mesmo mito que os nacionalistas ucranianos são antissemitas. Os nacionalistas ucranianos salvaram muitas vezes judeus e crianças, o que não quer dizer que não existissem alguns conflitos.”

Se o elogio e a negação dos crimes de Stepan Bandera são transversais à extrema-direita ucraniana, as ligações de Sadokha à extrema-direita não se ficam por aqui. Entre 2012 e 2014, Pavlo Sadokha foi assessor do deputado do Svoboda Yuriy Syrotiuk, eleito nas legislativas de 2012 e ex-chefe de imprensa do partido de extrema-direita. Syrotiuk era então uma das figuras mais importantes do Svoboda. 

Tornou-se ainda mais conhecido ao ser detido por causa dos confrontos entre militantes de extrema-direita (Svoboda e Sector Direito) e a polícia, em frente ao parlamento ucraniano, a 31 de agosto de 2015 - mais de 90 polícias ficaram feridos. Os deputados preparavam-se para aprovar uma emenda constitucional para dar mais autonomia a Donetsk e Lugansk, por causa dos Acordos de Minsk de 2015 - a extrema-direita ucraniana sempre pressionou, inclusive por meio de atos de violência, para que os acordos não fossem cumpridos. 

Em 2012, pouco antes de Sadokha ser seu assessor, Yuriy Syrotiuk já era alvo de polémica nacional por comentários xenófobos e de pureza da identidade ucraniana contra a cantora Gaitana, filha de mãe ucraniana e pai congolês, por ir representar o país no Festival Eurovisão da Canção de 2012. 

“A Ucrânia não será representada por uma pessoa que não é da nossa raça. Ela não é uma representante orgânica da nossa cultura. O telespetador vai acabar por acreditar que o nosso país está noutro continente, em algum lugar de África”, disse Syrotiuk, citado pelo Kyiv Post a 21 de fevereiro de 2012

Estas declarações não fizeram Sadokha recuar nas ligações ao deputado do Svoboda, seu amigo de juventude. “O Syrotiuk é meu amigo desde a juventude e naquela altura [entre 2012 e 2014], quando entrei [na associação], a comunidade em Portugal tinha uma clara posição contra Yanukovitch, desde o início que sabíamos que era pró-russo”, disse o dirigente associativo. 

“Organizámos várias manifestações, antes de 2014, contra a política de Yanukovitch e o Syrotiuk, como era deputado no parlamento, propôs-me ser o adjunto dele para ter mais poderes cá em Portugal.” Mas, sobretudo, para ter “mais autoridade” junto do então embaixador ucraniano, Oleksandr Nykonenko, nomeado por Yanukovitch, e, por inerência, influência junto da diáspora ucraniana. 

Mas Sadokha também aceitou o cargo para ter “mais possibilidade de oficialmente escrever cartas, pedidos, exigências”, como explicou o próprio ao Setenta e Quatro. E numa delas defendeu o Svoboda contra o Parlamento Europeu. 

Em 2012, o Conselho da Europa alertava para a falta de medidas de combate ao racismo por parte do Estado ucraniano e o Svoboda conquistava o melhor resultado da sua história nas eleições legislativas de 2012: elegeu 37 deputados em 450. O partido passou a receber financiamento estatal e alargou a sua área de influência. Os alarmes soaram na imprensa internacional e o Parlamento Europeu demonstrou preocupação numa resolução de 13 de dezembro de 2012.

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Pavlo Sadokha
Pavlo Sadokha com mais elementos da Associação de Ucranianos em Portugal a empunharem três bandeiras do ultranacionalista Sector Direito | Fonte: Facebook de Yaroslav Shevchyshyn

“[O Parlamento Europeu] Manifesta a sua preocupação com o crescente sentimento nacionalista na Ucrânia, expresso no apoio ao partido Svoboda, que, consequentemente, é um dos dois novos partidos a entrar na Verkhovna Rada [o parlamento ucraniano]”, lê-se na resolução, recordando de seguida que “os pontos de vista racistas, antissemitas e xenófobos vão contra os valores e princípios fundamentais da UE”. E terminou com um pedido bastante claro: o órgão legislativo europeu “apela aos partidos pró-democracia da Verkhovna Rada para que não se associem, apoiem ou formem coligações com este partido”.

Mais uma vez, Sadokha discordou do Parlamento Europeu, voltando a subscrever uma carta aberta dirigida ao presidente da instituição ressalvando que a Ucrânia não precisa de condenações por causa de “equívocos falsos e difamatórios”, pedindo para se retirar a resolução. Na altura, o Svoboda desejava trabalhar com a restante oposição, apresentando-se como meramente nacionalista, para evitar a formação de um cordão sanitário, para assim se normalizar na sociedade, ao mesmo tempo que radicalizaria a política ucraniana

“O partido Svoboda ganhou, em países da UE com uma larga presença de trabalhadores ucranianos imigrantes, a maioria dos votos nas últimas eleições, em 2012, para o parlamento ucraniano. O que a Ucrânia precisa como nação é o apoio sem atrito de outros países, não de condenação devido a equívocos falsos e difamatórios”, lê-se na carta aberta. 

“Acreditamos que a verdadeira ameaça à sociedade ucraniana é o governante Partido das Regiões [de Yanukovitch] com os seus métodos antidemocráticos de governação e de apoio à corrupção, não o partido Svoboda em aliança com outros partidos da oposição que querem levar a Ucrânia para o nível europeu de desenvolvimento e que já o começaram a implementar.”

O SVOBODA

A preocupação com o crescimento do Svoboda não foi apenas internacional, também aconteceu na Ucrânia. Num artigo de opinião publicado no Kyiv Post, o politólogo Andreas Umland alertava em 2012 para os riscos que o Svoboda representava para a sociedade ucraniana: a normalização do racismo e do antissemitismo.

O Svoboda surgiu da transformação de imagem de um partido claramente fascista, o Partido Nacional da Ucrânia, fundado em 1991, em Lviv, explica Umland. “O nome do SNPU soa deliberadamente como o do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães de Hitler, de inspiração nazi. O seu símbolo era o chamado Wolfsangel, outrora usado pela Divisão SS ‘Das Reich’, e hoje popular entre vários grupos neonazis europeus”, salientou o politólogo, referindo que a mudança de imagem do partido aconteceu em 2004.

“O Svoboda é um partido racista que promove explicitamente ideias etnocêntricas e antissemitas. Os seus principais pontos programáticos são a russofobia e a xenofobia, bem como, mais recentemente, um rígido posicionamento anti-imigração”, escreveu o académico. “A presença do Svoboda na legislatura nacional vai prejudicar o desenvolvimento de uma nação política ucraniana e de um patriotismo pan-étnico transregional.”

O foco do Svoboda na figura de Stepan Bandera e na OUN não é por acaso, faz parte de uma estratégia adotada pelo partido. Querem normalizá-lo na sociedade ucraniana (e na diáspora), e consequentemente as suas ideias de defesa de um Estado ucraniano etnocêntrico. 

“O Svoboda é um partido racista que promove explicitamente ideias etnocêntricas e antissemitas", escreveu o politólogo ucraniano Andreas Umland.

O Svoboda “é um defensor declarado de uma heroicização acrítica da Organização dos Nacionalistas Ucranianos, um partido ultranacionalista entre a I e a II Guerras Mundiais manchado pela sua colaboração temporária com o Terceiro Reich, bem como pela participação dos seus membros em ações genocidas contra polacos e judeus no oeste da Ucrânia durante a ocupação alemã”, salientou o politólogo ucraniano. 

As ligações internacionais do Svoboda também não deixam margem para dúvidas sobre o que defende. “Apesar de o Svoboda enfatizar o carácter europeu do povo ucraniano, é um grupo antiocidental, antiliberal e anti UE. Pertence à chamada Aliança Internacional dos Movimentos Nacionais Europeus”, concluiu o politólogo Andreas Umland.

Na altura, esta organização internacional era composta por vários partidos de extrema-direita, entre os quais o húngaro Jobbik, a francesa Frente Nacional (hoje União Nacional) de Marine Le Pen e o português Ergue-te! (antes Partido Nacional Renovador). O Jobbik foi responsável por vários ataques violentos a acampamentos de cidadãos roma, por exemplo. 

A LIGAÇÃO AO NEONAZI BATALHÃO SICH

No final de 2013, começou a contestação da Euromaidan contra o governo de Yanukovich e os militantes do Svoboda desempenharam um papel essencial nos protestos. Apesar de a extrema-direita ser uma minoria (8 a 10%) dos manifestantes e de as exigências serem pró-europeias, os seus militantes, ao agirem de forma organizada, conseguiram tirar grandes proveitos do caos da revolta política que se vivia na altura, ao mesmo tempo que criticavam e perseguiam os manifestantes pró-europeus que lhes eram críticos.

O presidente Yanukovich foi deposto e o Svoboda integrou por alguns meses a coligação governamental, até novas eleições serem organizadas e realizadas. O russo foi banido como segunda língua oficial – uma das medidas programáticas do Svoboda – e o Partido Comunista Ucraniano, visto como quinta coluna russa, foi proibido, com o Svoboda a ficar exultante. Posteriormente, numa clara violação do direito internacional, a Rússia anexou a Crimeia e, depois, fomentou os separatismos pró-russos em Donetsk e Lugansk.

Estalou a guerra que se viria a arrastar, primeiro de forma intensa, depois como conflito de baixa intensidade, no Donbass, até a Rússia invadir a Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022. Em 2014, mal os combates (a que os ucranianos chamaram "operação antiterrorista") no leste do país começaram, a extrema-direita abraçou o momento e criou vários batalhões.

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Pavlo Sadokha
Pavlo Sadokha a discursar num evento do Svoboda em Kiev, em 2014 | Fonte: Svoboda

O Svoboda criou o seu, o Batalhão Sich, cujo logótipo é um cossaco (em homenagem ao povo cossaco de Zaporíjia, famosos pela sua coragem e bravura) e as letras C14 – referência à expressão neonazi “We must secure the existence of our people and a future for white children” (Temos de garantir a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas) do supremacista branco norte-americano David Lane. 

A espinha dorsal deste batalhão foi a juventude do Svoboda, hooligans de futebol de extrema-direita e o grupo neonazi S14, criado em 2010 e que nos últimos anos ganhou destaque mediático por ataques a acampamentos da comunidade roma ucraniana. Esta comunidade é um dos principais alvos da extrema-direita por não ser vista como parte integrante do povo ucraniano.

Em 2014, o batalhão acabou integrado nas forças de segurança de voluntários de Kiev, passando a denominar-se 4.ª Companhia Sich do Regimento de Kiev, uma unidade especial de polícia. Mas nem por isso deixou de receber apoio público do Svoboda, nem de ter ligações orgânicas com o partido, recebendo mantimentos, por exemplo.

Uma das pessoas que se deslocou, em outubro de 2014, a Kiev para dar munições, medicamentos e alimentos ao Batalhão Sich foi Pavlo Sadokha, noticiou o Svoboda no seu site. Na Praça Sofia, na capital, Sadokha, que falava como assessor do deputado do Svoboda e representante da comunidade ucraniana em Portugal, discursou lado a lado com representantes do partido de extrema-direita.

“Trouxemos 180 conjuntos de uniformes impermeáveis, 80 pares de boinas, muitos cobertores, uma estação de rádio e 28 caixas de agasalhos [doados] por ucranianos na Europa”, disse na altura Sadokha, citado pelo Svoboda. “Como estava ligado a Yuriy Siriutuk, eram eles quem eu conhecia das organizações nacionalistas”, afirmou ao Setenta e Quatro o líder associativo. A situação mudou poucos meses depois: também desenvolveu contactos com o Sector Direito. 

Não foi, no entanto, o único encontro com o Svoboda em que esteve presente. O dirigente associativo reuniu-se a 23 de agosto de 2016 com o Conselho Regional de Lviv do partido de extrema-direita para discutir a cooperação entre o órgão local e as comunidades ucranianas da diáspora. Um dos presentes na reunião foi Ivan Vovk, presidente da Associação Patriótica Ucraniana em Volia, em Espanha, e o principal rosto do Svoboda em solo espanhol, escreveu o espanhol Público.

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Ivan Vovk
Ivan Vovk, presidente da Associação Patriótica Ucraniana, com jovens com metrelhadoras AK-47 nos arredores de Madrid, em Espanha | Fonte: Publico.es

Além de ter contactos recorrentes com a extrema-direita espanhola (o identitário Hogar Social Madrid e a La Falange), Vovk foi bem sucedido na construção de uma rede de ultranacionalistas ucranianos no país ibérico, através da associação que lidera, e na formação de um grupo de jovens que oferece ensinamentos sobre táticas de autodefesa e de tiro com metralhadoras nos arredores de Madrid. Nas fotos do grupo de jovens pode ver-se simbologia neonazi. 

A partir de 2016, as relações entre Sadokha e o Svoboda deterioraram-se. O líder associativo desenvolveu relações com o governo do presidente, Petro Poroshenko, e “algumas pessoas do Svoboda” acusaram-no de se ter vendido. Atualmente, “já não temos ligações”, diz. 

Mas até o presidente da Associação de Ucranianos de Portugal e o partido de extrema-direita ficarem de costas voltadas, o primeiro foi profícuo no apoio a batalhões de extrema-direita mal a guerra no leste da Ucrânia começou em 2014. “A associação contacta diretamente com as milícias na Ucrânia, para enviar a ajuda que recolhemos em Portugal. Não temos orientação neonazi”, disse Sadokha, citado pelo Expresso de 16 de julho de 2015.

Chegou até a participar na organização de elementos da comunidade ucraniana para irem combater, sem, no entanto, referir em que batalhões. “Até agora inscreveram-se 36 pessoas, homens entre os 30 e os 50”, disse ao Diário de Notícias Sadokha, em março de 2014. Um deles foi o ucraniano Ruslan Ignatoli, de 36 anos, que morreu em combate nas fileiras do Sector Direito. O próprio Sadokha disse ao Expresso, em julho de 2015, ter estado “lá na guerra, na base das milícias”, e que não viu “ninguém preocupado com ideologias”.

Nos dois anos que se seguiram ao início da guerra, Sadokha enviou mantimentos ao batalhão ultranacionalista, cujo símbolo é o tridente ucraniano numa bandeira vermelha e preta - a tal referência à palavra de ordem nazi. Fê-lo pelo menos duas vezes, em julho de 2015 e julho de 2016. E dois militantes do grupo de extrema-direita agradeceram num vídeo, divulgado no site da Associação de Ucranianos em Portugal.

Mas o presidente associativo foi mais longe: conduziu mesmo uma ambulância com mantimentos de Lisboa para Mariupol, no leste da Ucrânia, acompanhado por dois jornalistas do semanário Expresso. “Naquela altura também visitámos o Azov e o Sector Direito, fomos a Mariupol. Nós fomos lá entregar coisas ao Azov”, disse Sadokha ao Setenta e Quatro. A ambulância ficou lá, Sadokha regressou mais tarde a Portugal. 

"Alguns consideram-nos neonazis, ultranacionalistas ou de extrema-direita. Eu ajudo o Sector Direito porque eles realmente protegem a minha terra natal da agressão russa", disse durante a viagem o líder comunitário, citado pelo Expresso. Mas as suas ligações parecem ser mais ideológicas do que mero patriotismo, apesar de ao Setenta e Quatro argumentar que ajuda todos aqueles que combatem pela Ucrânia. A verdade é que no site da associação só são publicitadas ajudas a organizações de extrema-direita. 

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Vídeo de agradecimento do Sector Direito à Associação de Ucranianos em Portugal | Fonte: YouTube do Sector Direito

E, por todo o envio de ajuda, publicitada ou não, Sadokha foi agraciado em 2016 com uma medalha dada pelo então ministro da Defesa, Stepan Poltorak, numa cerimónia na embaixada da Ucrânia em Portugal, disse o próprio ao Setenta e Quatro

O Sector Direito foi criado em outubro de 2013, pouco antes dos protestos da Euromaidan começarem em novembro desse ano, e a sua ideologia baseia-se na da Organização dos Nacionalistas Ucranianos. O movimento foi, à semelhança do Svoboda, um ator essencial na contestação ao governo de Yanukovitch, saindo das margens da política, e o jornal Público caracterizava-o em 2015 como “a nova ameaça do Governo de Kiev” na sequência de tiroteios entre os seus membros ultranacionalistas e a polícia. 

Com a guerra, o Sector Direito criou um batalhão e, mais tarde, um partido político, sem que tivesse qualquer sucesso eleitoral. Mesmo quando, em 2019, integrou uma coligação de extrema-direita com o Svoboda e com o Corpo Nacional, braço político do Movimento Azov. 

Ao contrário de tantos outros batalhões, o do Sector Direito não ficou sob a alçada do Estado ucraniano. Não recebeu armas nem apoio mais aprofundado e, ao contrário do Batalhão Azov, não caiu nas graças do ministro do Interior ucraniano, Arsen Avakov, até este abandonar o cargo em julho de 2021. O Sector Direito perdeu importância no universo da extrema-direita ucraniana.  

No entanto, até 2017 não era esse o caso: o Sector Direito era um dos principais atores de extrema-direita ucraniana com destaque internacional. O seu prestígio chegava até aos Estados Unidos, onde o fórum neonazi norte-americano Stormfront incentivava a ida de extremistas de direita para combaterem nas suas fileiras. 

LIGAÇÕES ENTRE AS EXTREMA-DIREITAS PORTUGUESA E UCRANIANA

Em 2015, a célula portuguesa da rede neonazi Misanthropic Division (MD) organizou uma conferência em Paço de Arcos, em Oeiras. O principal orador foi o italiano Francesco Saverio Fontana, ligado ao movimento italiano neofascista CasaPound e então membro do Sector Direito. Fontana andava a fazer uma digressão pela Europa - passou ainda pelo Reino Unido e pela França - para recrutar combatentes para as fileiras da MD e do Sector Direito.

Um dos fundadores da célula portuguesa da Misanthropic Division foi João Martins, intelectual de extrema-direita e condenado a 17 anos de prisão (cumpriu nove anos e quatro meses) pelo assassínio de Alcindo Monteiro, no Bairro Alto, em 1995. Foi ele um dos organizadores da conferência que trouxe a Portugal o neofascista italiano. 

Na altura da investigação do Público sobre as ligações da extrema-direita portuguesa com a ucraniana, escrita pelo autor deste texto, João Martins disse que o evento atraiu “representantes da comunidade ucraniana em Portugal”. Um deles foi Pavlo Sadokha, confirmou o próprio ao Setenta e Quatro, tendo dito que saiu com o pensamento de “achar que são pessoas não adequadas”. “Não fazemos parte destas pessoas, não nos interessam mercenários que vão lutar por lutar”, disse. 

A rede internacional neonazi Misanthropic Division foi fundada na Ucrânia em 2013 para lutar pela criação de um Estado etnocêntrico. Foi próxima do Sector Direito até optar por estreitar laços com o Movimento Azov. 

A MD começou por ter ligações próximas ao Sector Direito, mas, mais tarde, aproximou-se do Movimento Azov, por este ter conquistado maior relevância e desenvolvido uma melhor estrutura organizativa

Desde 2014 que as forças e serviços de segurança portugueses vigiam as representações de milícias neonazis ucranianas em Portugal, nomeadamente do Batalhão Azov e do Sector Direito, por suspeitas de “recrutamento, angariação de apoio logístico e financiamento”, revelou uma notícia do Expresso de 16 de julho de 2015. 

Sadokha disse na altura ao semanário ter já recolhido “mais de 60 mil euros e comprado uma carrinha” para enviar para a Ucrânia, além de ter adquirido um jipe para “eles”. "Eles" são o Sector Direito. 

O Sector Direito tinha nesta época simpatizantes em Lisboa, Porto e Guimarães e, mais tarde, também em Braga, e fazia apelos internacionais para receber remessas de dinheiro. Na altura da notícia, o Expresso citava uma fonte dizendo que as autoridades ainda não tinham dados concretos sobre quantos portugueses já tinham sido recrutados, deixando claro no entanto que tal poderia acontecer num futuro próximo.

Meses depois, em setembro de 2015, aconteceu a conferência com o neofascista italiano. Mais uma ponte internacional se estabeleceu.

 

A reportagem dava conta que Pavlo Sadokha "sugeriu recentemente a ilegalização do Partido Comunista Português". Não o fez. Notícia alterada às 16h37.

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