domingo, 28 de maio de 2023

«VLADIMIR PLIASSOV E A RUSSOFOBIA PORTUGUESA» - crónica de CARMO AFONSO no ‘Público’ de 24/Maio/2023

 



«VLADIMIR PLIASSOV E A RUSSOFOBIA PORTUGUESA»
- crónica de CARMO AFONSO no ‘Público’ de 24/Maio/2023
«A russofobia dos portugueses terá origem nos demónios semeados pela história dos pastorinhos de Fátima, nas fábulas da maldita Rússia comunista e ainda em alguma ficção importada dos Estados Unidos»
O diretor do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra foi afastado depois de 35 anos de serviço. Chama-se Vladimir Pliassov, ainda dava aulas e o seu contrato cessou por decisão do próprio reitor, Amílcar Falcão. Não teve direito a defesa ou ao exercício do contraditório.
O diretor do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra foi afastado depois de 35 anos de serviço. Chama-se Vladimir Pliassov, ainda dava aulas e o seu contrato cessou por decisão do próprio reitor, Amílcar Falcão. Não teve direito a defesa ou ao exercício do contraditório.
O assunto aqui não se esgota na injustiça e na eventual ilegalidade do procedimento (ou da falta dele) que levou à cessação do seu contrato. É ponto assente que os seus mais elementares direitos não foram respeitados e que é inaceitável a forma como foi tratado pela instituição com especial destaque para a atuação do reitor. O próprio decidirá o que fazer com isso.
Dois ativistas ucranianos denunciaram, num artigo de opinião publicado no Jornal de Proença, que Vladimir Pliassov fazia propaganda pró-Putin nas suas aulas e que tinha ligações aos serviços secretos russos. No dia seguinte José Milhazes levou o assunto à SIC-Notícias e o artigo ainda foi publicado no jornal Observador.
A argumentação dos ativistas não tinha consistência, desde logo porque nunca frequentaram uma única aula do professor. Terá sido cometida uma dupla injustiça: uma pessoa foi despedida sem lhe ter sido dada a possibilidade de apresentar uma defesa e as razões em que se baseou quem tomou tal decisão careciam de fundamento.
O reitor da Universidade de Coimbra teve uma única preocupação formal neste processo: a de fazer um comunicado a anunciar a decisão. Também nesse comunicado obliterou-se a dar explicações e a indicar factos, tendo apenas referido que tinha sido verificado que as atividades letivas estavam a extravasar o seu âmbito. Muito elucidativo.
Num mundo em que tantas coisas graves estão a acontecer porque é importante falar disto? Porque este caso pôs a nu a facilidade que existe em prejudicar ilegitimamente uma pessoa em razão da sua nacionalidade. Mas ainda aconteceu pior: é que, tirando os de sempre, foram poucas as pessoas que manifestaram a sua indignação perante a violação dos mais básicos direitos deste homem.
Sempre existiu russofobia em Portugal. Em maio do ano passado, o jornal The Guardian publicou um estudo que anunciava Portugal como o terceiro país do mundo com maior aversão à Rússia, só ultrapassado pela Ucrânia e pela Polónia. Reparem que não temos qualquer ligação histórica à Rússia. Não existem traumas a explicar isto. A russofobia dos portugueses diz muito pouco sobre os russos. Terá a sua origem nos demónios semeados pela história dos pastorinhos de Fátima, nas fábulas da maldita Rússia comunista e ainda em alguma ficção importada dos Estados Unidos. Não é nada de novo, mas é claro que depois da invasão piorou.
A cultura russa é magnífica e ultrapassa, pela esquerda e pela direita, aquele que será o legado de Putin. Se sempre foram ridículas e despropositadas quaisquer animosidades contra a grande nação russa – de Tolstói, de Gogol, de Dostoiévski e de Nabokov – agora elas revestem uma gravidade extrema e não podem ser toleradas. A mensagem que passa, com o caso de Vladimir Pliassov, é que as pessoas de nacionalidade russa que vivem em Portugal estão desprotegidas e podem ser alvo de injustiças.
Já deveríamos saber mais e melhor que isto. Não foi só o reitor da Universidade de Coimbra que falhou. Falharam todos aqueles que assobiaram para o lado quando souberam deste caso. A guerra não pode ser pretexto para baixarmos a guarda perante injustiças.
É difícil evitar o dilema entre a vontade de apoiar a Ucrânia e a de apoiar o fim do conflito. A ideia de que continuar a armar a Ucrânia é um bom caminho para a paz tem demasiadas incoerências. Como pode a Ucrânia ganhar esta guerra? Que desfecho terá o conflito se não houver uma paz negociada? Mas existe uma certeza que cada um de nós poderá ter: trazer a guerra ao nosso quotidiano hostilizando pessoas inocentes é fazer parte do problema e nunca de uma solução. Aqui não pode haver dilemas e o que decidirmos tem consequências.
Amílcar Falcão prestou um péssimo serviço ao país. Ele representa o que existe de mais ignorante em cada português, aquilo que deve ser combatido e erradicado: o preconceito e a necessidade de validação. Está à frente de uma universidade. Assim é difícil acreditar que são centros de conhecimento. Falar disto é desagradável, mas não falar é feio.
(A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico)

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