David Brinkley, o lendário locutor dos EUA com uma carreira de 54 anos desde a Segunda Guerra Mundial, disse certa vez que um homem de êxito é aquele que pode construir uma base firme com os tijolos que outros lhe lançaram. É duvidoso que estadistas dos EUA tenham praticado este nobre pensamento herdado de Jesus Cristo.
A impressionante proposta do presidente russo Vladimir Putin ao presidente turco Recep Erdogan – de construir um gasoduto para a Turquia a fim de criar um hub internacional a partir do qual se possa fornecer gás russo à Europa dá uma vida nova a este pensamento tão “gandhiano”.
Putin discutiu a ideia com Erdogan na sua reunião de 13 de Outubro em Astana e, na semana passada, dela falou no fórum da Semana de Energia da Rússia, onde propôs criar na Turquia o maior centro de gás a Europa e redirigir o volume de gás, cujo tráfego já não é possível através do Nord Stream, para este centro.
Putin disse que pode implicar a construção de outro sistema de gasodutos para alimentar o hub na Turquia, através do qual será fornecido gás a países terceiros, sobretudo europeus, “se estiverem interessados”.
À primeira vista (prima facie), Putin não espera nenhuma resposta positiva de Berlim à sua proposta permanente de utilizar o ramo (string) do Nord Stream 2 que permaneceu intacto para fornecer 27,5 mil milhões de metros cúbicos de gás durante os meses de inverno. O silêncio ensurdecedor da Alemanha é compreensível. O chanceler Olaf Scholz está aterrorizado pela cólera do presidente Biden.
Berlim diz que sabe quem sabotou os gasodutos Nord Stream, mas que não revelará pois afeta a segurança nacional da Alemanha! A Suécia também alega que o assunto é demasiado delicado para compartilhar as provas recolhidas com qualquer país, inclusive a Alemanha! Biden impôs o temor de Deus nas mentes destes tímidos “aliados” europeus, os quais deixaram de ter quaisquer dúvidas sobre o que é bom para eles! Os media ocidentais também têm a ordem de minimizar a importância da saga do Nord Stream a fim de que, com o passar do tempo, a memória pública se desvaneça.
Contudo, a Rússia fez o seu trabalho de casa para que a Europa não pudesse prescindir do gás russo, apesar da atual fanfarronice europeia de auto-negação. Dito simplesmente, as indústrias europeias dependem dos fornecimentos baratos e confiáveis russos para que os seus produtos permaneçam competitivos no mercado mundial.
O ministro da Energia do Qatar, Saad al-Kaabi, disse na semana passada não poder imaginar um futuro com fluxo “zero de gás russo” para a Europa. Assinalou de modo azedo: “Se este for o caso, então creio que o problema vai ser enorme e durante longo tempo. Simplesmente não têm volume suficiente para trazer [de fora] e substituir esse gás (russo) a longo prazo, a menos que digam: 'Vou ficar a construir enorme centrais nucleares, vou permitir o carvão, vou queimar combustíveis”.
Na essência, a Rússia planeia substituir o seu hub de gás em Haidach, na Áustria (o qual foi apresado pelos austríacos em Julho). Conceptualmente, o hub na Turquia tem um mercado de gás já pronto no sul da Europa, incluindo a Grécia e a Itália. Mas há mais nisto do que parece à simples vista.
Em suma, Putin deu um passo estratégico na geopolítica do gás. Sua iniciativa joga no lixo a ideia tresloucada dos burocratas russófobos da Comissão Europeia, em Bruxelas, encabeçados por Ursula von der Leyen, de impor um teto de preço às compras de gás. Não têm sentido os planos dos Estados Unidos e da União Europeia de degradar o perfil da Rússia como superpotência gasista.
Logicamente, o próximo passo para a Rússia deveria ser alinhar-se com o Qatar, o segundo maior exportador de gás do mundo. O Qatar também é um aliado próximo da Turquia. Recentemente, em Astana, à margem da cimeira da Conferência sobre Interação e Construção de Medidas de Confiança na Ásia (Conference on Interaction and Confidence-Building Measures in Asia, CICA), Putin efetuou uma reunião a portas fechadas com o emir do Qatar, o xeque Tamim bin Hamad Al Thani. Acordaram efetuar outra reunião dentro em breve na Rússia.
A Rússia já tem um quadro de cooperação com o Irão numa série de projetos conjuntos na indústria do petróleo e do gás. O vice-primeiro ministro russo Alexander Novak revelou recentemente seus planos para concluir um acordo de intercâmbio de petróleo e gás com o Irão em fins do ano. Informou que se estão a elaborar pormenores técnicos: questões de transporte, logística, preços e formação de tarifas”.
Neste momento, a Rússia, o Qatar e o Irão representam em conjunto mais da metade de todas as reservas provadas de gás do mundo. Aproxima-se o momento de intensificarem a cooperação e coordenação com base no modelo da OPEP Plus. Os três países estão representados no Fórum de Países Exportadores de Gás (GECF).
A proposta de Putin apela ao sonho de longa data da Turquia de se converter num centro energético às portas da Europa. Não surpreendentemente, Erdogan instintivamente empolgou-se com a proposta de Putin. Falando esta semana aos membros do partido governante no parlamento turco, Erdogan disse: “Na Europa estão agora a lidar com a questão de como se manterem aquecidos no próximo inverno. Não temos este problema. Acordamos com Vladimir Putin criar um hub de gás no nosso país, através do qual o gás natural pode ser entregue à Europa. Portanto, a Europa encomendará gás à Turquia”.
Além de reforçar a sua própria segurança energética, a Turquia também pode contribuir para a da Europa. Assim, a importância da Turquia dará sem dúvida um salto qualitativo no cálculo da política externa da UE, ao mesmo tempo que reforçará a sua autonomia estratégica na política regional. Este é um grande passo em frente na geoestratégia de Erdogan – a direção geográfica da política externa turca sob a sua vigilância.
Do ponto de vista russo, naturalmente, a autonomia estratégica da Turquia e a sua determinação de seguir uma política externa independente funcionam esplendidamente para Moscovo sob as condições atuais de sanções do ocidente. É concebível que as empresas russas começarão a encarar a Turquia como uma base de produção onde as tecnologias ocidentais se tornam acessíveis. A Turquia tem um acordo de união aduaneira com a UE, o qual elimina totalmente os direitos alfandegários sobre todos os produtos industriais de origem turca. (Ver meu blog Russia-Turkey reset eases regional tensions, 09/Agosto/2022).
Em termos geopolíticos, Moscovo sente-se à vontade com a condição turca de membro da NATO. Claramente, o hub de gás proposto contribui com muitos rendimentos adicionais para a Turquia e dará uma maior estabilidade e previsibilidade às relações Rússia-Turquia. De facto, os vínculos estratégicos que unem os dois países estão a ampliar-se constantemente: o acordo S-400 ABM, a cooperação na Síria, a central nuclear de Akkuyu, o gasoduto Turk Stream, para nomear alguns.
Os dois países admitem sinceramente que têm diferenças de opinião, mas a forma em que Putin e Erdogan, através da diplomacia construtiva, continuam a converter as circunstâncias adversas em janelas de oportunidade para uma cooperação que beneficie a todos é simplesmente assombrosa.
É preciso engenho para conseguir que os aliados europeus dos EUA obtenham gás russo sem nenhuma coação ou aborrecimentos, inclusive depois de Washington haver enterrado os gasodutos Nord Stream nas profundezas do Mar Báltico. É uma ironia dramática que uma potência da NATO faça parceria com a Rússia nesta direção.
A elite da política externa dos EUA, retirada dos stocks da Europa do Leste, fica sem palavras devido ao puro refinamento do engenho russo para ultrapassar sem nenhum traço de rancor a forma como os Estados Unidos e seus aliados – Alemanha e Suécia, em particular – bateram com a porta a Moscovo impedindo-a até de dar uma olhadela aos gasodutos danificados de muitos milhares de milhões de dólares que haviam construído de boa fé nas profundidades do Mar Báltico a instâncias de dois chanceleres alemães, Gerhard Schroeder e Angela Merkel.
A atual liderança alemã do chanceler Olaf Scholz parece muito imbecil, covarde e provinciana. Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, recebe um enorme repúdio em tudo o que em última análise definirá o seu trágico legado em Bruxelas como uma porta-bandeira dos interesses americanos. Isto provavelmente converte-se no primeiro estudo de caso para historiadores sobre como funcionará a multipolaridade na nova ordem mundial.
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