sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Os drones sobrevoam mas ninguém se atreve a disparar-lhes. Estão ali precisamente para identificar posições das forças pró-russas e corrigir o fogo da artilharia pesada ocidental manobrada pelas tropas ucranianas.

 

Os drones sobrevoam mas ninguém se atreve a disparar-lhes. Estão ali precisamente para identificar posições das forças pró-russas e corrigir o fogo da artilharia pesada ocidental manobrada pelas tropas ucranianas. Quando a bateria está prestes a acabar, aparece um novo drone que cumpre as funções do que regressa para carregar.
Uma e outra vez, as forças de Kiev tentam recuperar o controlo total de Peski, que é agora um lugar fantasma. Entre as enormes paredes dos prédios em ruínas, escondem-se combatentes, muitos deles em guerra há oito anos. É um pequeno exército de sombras das forças especiais que executa operações a meio da noite nestas ruas que um dia já tiveram 2 mil habitantes.
Todos os dias, de forma quase religiosa, excepto quando está em missão, falo com Alfonso Cano, nome de guerra de Alexis Castillo, um comunista colombiano que vivia em Espanha e que decidiu adoptar o pseudónimo de um dos históricos comandantes das FARC, uma das mais antigas guerrilhas do mundo.
“Acabo de llegar”. Ouve-se uma enorme explosão do outro lado da chamada. “Alexis, estás bem?”, pergunto. “Joder, escuchaste?”, responde. Estamos a poucos quilómetros de distância um do outro. Pesky está encostada a Donetsk e é ali que se dão alguns dos combates mais encarniçados nesta região. Do meu nono andar no bairro de Voroshilovsky, enquanto ouço Alexis, vejo uma mulher que sacode um tapete à janela apesar das explosões. Por vezes, quando os disparos da artilharia ucraniana não caem sobre as posições pró-russas, o colombiano sabe que a Ucrânia está a atacar Donetsk. Ele ouve os disparos e eu ouço os impactos.
Conheci-o em 2018 quando cheguei ao Donbass pela primeira vez em plena guerra civil. Então, andava com uma muleta enquanto recuperava de uma operação a uma perna depois de cair ferido na batalha pelo controlo do aeroporto de Donetsk.
Alexis atravessou meio mundo para combater ao lado dos separatistas de Donetsk no Batalhão Vostok, uma milícia armada que reuniu centenas de estrangeiros dispostos a dar a vida contra um regime que consideravam fascista. Não foram poucas as vezes que Alexis, entre outros, comparou a sua decisão pessoal com a dos milhares de trabalhadores antifascistas, em 1936, quando decidiram juntar-se às Brigadas Internacionais em Espanha para combater o golpe liderado pelo franquismo e lutar por um povo que não era o seu. Contou-me que tomou essa decisão no dia em que viu as imagens do massacre em Odessa, na Casa dos Sindicatos, que vitimou 42 antifascistas, muitos deles queimados vivos.
“Tío, aquí hace un frío en la noche que te cagas. No sé como va a ser el invierno”, diz-me enquanto me explica que as forças ucranianas perderam vários soldados, um tanque e vários carros de combate no último ataque em Peski. “Cuando nos veamos te voy a mostrar un vídeo de un blindado norte-americano que destruímos”.
Passamos horas ao telefone a discorrer sobre tudo e sobre nada. Falamos das operações militares, dos avanços e recuos, falamos de como achamos que será o futuro, falamos de política internacional, falamos de bandas punk de Madrid e do País Basco e falamos dos nossos pratos preferidos.
“Cuidate mucho, hermano”, invariavelmente despedimo-nos assim. Como se pudesse ser a última vez que falamos. Como se amanhã não pudesse queixar-me mais da falta de bacalhau ou como se amanhã não pudesse mais proclamar a supremacia do rum sobre o vodka. E, desta vez, foi mesmo. Foi a última vez que nos despedimos. O Alexis caiu debaixo do fogo da artilharia num país que não era o seu com a convicção de que lutava contra o fascismo.
São muitas as mães que choram dos dois lados a morte dos seus filhos e não há nada mais terrível numa guerra do que este rosário de cadáveres que desfila em frente aos nossos olhos. No Donbass, vamos coleccionando mortos e um dia olharemos com a distância das rugas do tempo para todos estes homens que nunca chegaram a velhos, que nunca conheceram os seus netos. Esta noite é a mãe de Alexis que chora, a sua companheira, o seu filho, ainda menino, e com eles tantos outros na Colômbia, Espanha e Donbass. Um homem cujas convicções o levaram a dar a sua vida por uma terra estrangeira que acabou sendo sua. Hasta siempre, hermano.

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