As empresas militares e de segurança privada estão prontas para ganhar muito dinheiro no conflito com a Rússia
A guerra é em geral associada à destruição, mas ela também é produtiva. O senso comum sobre os conflitos armados em geral apontaria para as perdas de vidas, de recursos, os danos às cidades e à infra-estrutura. Além disso, a guerra afetaria o comércio e produção nas regiões afetadas. Tudo isso de fato pode ser observado, mas é importante ter olhos para quem se beneficia do conflito. Dependendo dos negócios e do cliente, há muito dinheiro para ganhar e muitos produtos para vender nos campos de batalha.
Por Thomaz Paoliello*, do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI)**
As empresas militares e de segurança privada despontaram como uma das partes beneficiárias economicamente dos conflitos, particularmente na Guerra do Iraque. As forças armadas dos Estados Unidos passaram a terceirizar cada vez mais funções relacionadas à atividade militar para companhias, incluindo logística, transporte, alimentação, funções de informação e inteligência, além de atividades mais próximas do combate, como guarda-costas. Só lembrar que Edward Snowden não era um funcionário da NSA, mas funcionário da Booz Allen Hamilton, prestadora de serviços para a agência.
Na Rússia também é possível observar o mesmo fenômeno, ainda que em escala menor. No período da crise da Criméia, assim como na Guerra da Síria, a empresa Wagner PMC esteve ao lado das forças russas nas duas operações. Apesar de não termos relatos de sua presença no atual conflito, o histórico recente deixa pouca dúvida de que em algum momento darão as caras nas linhas de combate ucranianas.
Com a retirada das tropas dos Estados Unidos do Iraque, e mais recentemente do Afeganistão, as empresas estadunidenses perderam boa parte de seus negócios, que dependem em grande medida da ação das forças armadas dos EUA. Desde então tem operado lobby para encontrar uma nova possibilidade de negócios, e podem ter encontrado essa oportunidade na guerra da Ucrânia. Erik Prince, fundador da famigerada Blackwater tem demonstrado desde anos antes do início do conflito um interesse macabro no país. [nota do editor: a Blackwater é uma empresa militar privada americana, fundada em 1997 por Erik Prince, que teve presença destacada na chamada “Guerra ao Terror” e que recebeu ampla publicidade em 2007, quando seus empregados mataram 17 civis iraquianos e feriram 20 na praça Nisour, em Bagdá. Leia abaixo o primeiro capítulo do livro “Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo”, de Jeremy Scahill, Companhia das Letras, 2008]
Mercenários muito bem pagos
Nas linhas de frente do conflito ucraniano já tem aparecido cada vez mais combatentes de terceiros países, para além de Rússia e Ucrânia. O governo ucraniano já tem site oficial para que voluntários se juntem a legiões estrangeiras no conflito. Num conflito globalizado, as linhas de frente tornam-se também multinacionais. Se no noticiário aparecem os heróis, voluntários, também veremos o crescimento da presença de combatentes com interesses menos altruístas, contratados terceirizados. A BBC, por exemplo, divulgou uma oportunidade de trabalho como guarda-costas na Ucrânia que paga entre 1000 e 2000 dólares por dia. Para estes e seus empregadores, talvez a guerra não seja assim tão ruim.
As empresas militares valem-se de bancos de dados com combatentes de diferentes origens possivelmente interessados em trabalhar em zonas de conflitos. Por este canal será possível contratar combatentes altamente qualificados, com larga experiência militar, e dispostos a arriscar suas vidas por atraentes remunerações. Através dessas empresas, soldados americanos podem aparecer nas linhas de frente do conflito sem que isso signifique envolvimento direto do país. Seriam apenas “civis” quando vierem os dados de mortos e feridos. As empresas militares serão uma chave para compreender o que ocorre no campo de batalha, e já são uma chave para entender porque o governo dos EUA aposta, até o momento, em expandir em vez de reduzir o conflito.
Thomaz Paoliello* é professor do curso de Relações Internacionais e do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP. Pesquisador visitante no LACC – London School of Economics.
**Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI). Coordenador: Reginaldo Nasser, professor livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC(SP), Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e Puc-SP) e pesquisador do INEU ( Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA) Vice-coordenador: Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC(SP) e pesquisador do INEU.
Primeiro capítulo do livro “Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo”, de Jeremy Scahill, Companhia das Letras, 2008
O rosto da Blackwater
2 de outubro de 2007
Washington, D.C.
Erik Prince, o proprietário da Blackwater, 38 anos e rosto de menino, entrou marchando confiante na ricamente decorada câmara de audiência do Congresso, e foi imediatamente cercado por um enxame de paparazzi. As câmeras bateram seus flashes e as cabeças voltaram-se para ele no cômodo abarrotado. O homem no comando de um exército de mercenários não estava escoltado pelo seu esquadrão de elite composto de ex-fuzileiros da Marinha e agentes das Forças Especiais, mas por uma tropa de advogados e conselheiros. Dentro de minutos, sua imagem seria transmitida para todo o planeta, inclusive para televisores espalhados por todo o Iraque, onde a fúria contra os seus homens aumentava a cada momento. Sua companhia era agora infame e, pela primeira vez desde o início da ocupação, ela tinha um rosto.
Era um momento ao qual Prince havia muito resistia. Antes daquele morno dia de outubro de 2007 em Washington, ele evitara os holofotes, e seus empregados eram conhecidos por frustrar as tentativas de fotografá-lo por parte dos jornalistas. Quando Prince porventura aparecia em público, era quase exclusivamente por ocasião de conferências militares, em que o seu papel era exaltar as virtudes da sua empresa e do trabalho prestado por ela ao governo americano, serviço que, em parte, consistia em manter vivos os mais detestados oficiais no Iraque. Desde o dia 11 de setembro, a Blackwater subira a uma posição de extraordinária proeminência dentro do aparato da “guerra ao terror,” e os seus contratos com o governo federal haviam crescido até ultrapassar a soma de 1 bilhão de dólares. Naquele dia, o homem no controle de uma força na vanguarda da ofensiva guerra da administração Bush no Iraque ficaria na defensiva.
Pouco depois das dez da manhã no dia 2 de outubro, Prince jurou testemunho em audiência diante do Comissão de Superintendência e Reforma Governamental do deputado Henry Waxman. O ex-SEAL da Marinha, de barba feita e porte musculoso, vestia um terno azul de corte inteligente – mais para executivo-chefe do que empregador de caubóis. Na escrivaninha diante da cadeira de Prince estava uma simples identificação de papel em que se lia “sr. Prince”. Os republicanos tentaram protestar e adiar a reunião antes que esta começasse, mas a medida não foi aprovada. Bem ao estilo de Waxman, o título divulgado para o evento era genérico e brando: “Audiência sobre os Contratos Privados de Segurança no Iraque e no Afeganistão”. Mas o motivo do aparecimento de Prince no Capitólio era muito específico e politicamente carregado. Duas semanas antes, suas forças da Blackwater estiveram no centro da mais mortífera ação de mercenários no Iraque desde o início da ocupação, um incidente que um oficial de alta patente do Exército americano caracterizou como tendo um impacto potencialmente “pior do que Abu Ghraib”. Foi um massacre batizado por alguns de “Domingo Sangrento em Bagdá”.
Introdução:
O domingo sangrento de Bagdá
Dezesseis de setembro de 2007, aproximadamente 12h08, praça Nisour, Bagdá, Iraque. Era um dia quente e úmido, com temperaturas atingindo os 38 graus. O comboio fortemente armado da Blackwater entrou no congestionado cruzamento do distrito de Mansour, na capital iraquiana. Esta seção da cidade, antes de alto padrão, ainda apresentava butiques, cafés e galerias de arte que lembravam dias melhores. A ameaçadora caravana consistia em quatro grandes veículos blindados modelo “Mamba” de fabricação sul-africana, com metralhadoras de calibre 7.62 montadas na parte superior. Para a polícia iraquiana, já se tornara parte corriqueira do seu dia de trabalho interromper o tráfego para abrir caminho para a passagem dos VIPs americanos, protegidos por soldados particulares fortemente armados. Pergunte aos oficiais americanos e eles dirão que o motivo é prevenir um ataque de insurgentes contra comboios americanos. No entanto, era mais freqüente a polícia iraquiana fazer isto para preservar a segurança de civis que se arriscavam a ser fuzilados apenas por se aproximarem demais das vidas mais valiosas no seu país – as dos oficiais estrangeiros da ocupação.
Quando o comboio da Blackwater entrava na praça naquele dia, um jovem iraquiano estudante de medicina, chamado Ahmed Hathem al-Rubaie, dirigia o sedã Opal branco da família com a mãe de passageira. Tinham acabado de deixar o pai de Ahmed, Jawad, um patologista de sucesso, próximo ao hospital onde trabalhava. Seguiram então o seu caminho para resolver algumas tarefas, como buscar os papéis de inscrição na faculdade para a irmã de Ahmed. O plano era realizar o que precisavam fazer e voltar mais tarde para buscar Jawad. Num lance do destino, encontraram-se presos no trânsito próximo à praça Nisour. Os Rubaies eram muçulmanos devotos e estavam em jejum observando o mês sagrado do Ramadã. Ahmed era poliglota, fã de futebol, e estava no terceiro ano da faculdade de medicina, onde estudava para se tornar cirurgião. A medicina estava no seu DNA. Como o pai, a passageira de Ahmed naquele dia, a mãe, também era médica – uma alergista. Jawad diz que a família poderia ter deixado o Iraque, mas acreditava que eles eram necessários ao país. “Dói-me quando vejo médicos abandonando o Iraque”, disse ele.
Ali Khalaf Salman, um policial de trânsito iraquiano de serviço na praça Nisour naquele dia, recorda-se vivamente do momento em que o comboio da Blackwater entrou no cruzamento, obrigando a ele e os colegas a prontamente interromper o tráfego. Mas, quando os Mambas entraram na praça, o comboio subitamente deu meia-volta numa manobra-surpresa e prosseguiu na contramão numa rua de mão única. Enquanto Khalaf observava, o comboio parou abruptamente. Ele diz que um enorme homem caucasiano de bigode, posicionado acima do terceiro veículo do comboio da Blackwater, começou a disparar sua arma “a esmo”.
Khalaf olhou na direção dos disparos, na rua Yarmouk, e ouviu uma mulher gritando:”Meu filho! Meu filho!”. O policial correu em direção à voz e encontrou uma mulher de meia-idade dentro de um veículo abraçando um homem de vinte anos que fora atingido na testa e estava coberto de sangue. “Tentei ajudar o jovem, mas a mãe o abraçava com tanta força”, recorda-se Khalaf. Outro policial iraquiano, Sarhan Thiab, também correu até o carro. “Tentamos ajudá-lo”, disse Thiab. “Vi que o lado esquerdo da cabeça dele fora destruído e a mãe gritava: ‘Meu filho, meu filho! Ajudem-me, ajudem-me!’.”
O policial Khalaf lembra-se de olhar para os atiradores da Blackwater:
“Ergui o braço esquerdo bem alto no ar para tentar sinalizar ao comboio que parasse de disparar”. Ele diz que pensou que os homens fossem cessar o fogo, já que ele era um policial claramente identificado. O corpo do jovem ainda estava no banco do motorista do veículo automático e, enquanto lá estavam Khalaf e Thiab, o carro começou a se adiantar, possivelmente porque o pé do falecido ainda repousava no acelerador.
Posteriormente, os guardas da Blackwater disseram que abriram fogo contra o veículo porque este acelerava e não obedeceu à ordem de parar; uma alegação contestada por diversas testemunhas. Fotos aéreas da cena mostraram depois que o carro nem sequer havia entrado na rotatória quando foi alvejado pela Blackwater, enquanto a reportagem do New York Times revelava que “O carro no qual as primeiras pessoas foram mortas não chegou a se aproximar do comboio da Blackwater até que o motorista iraquiano tivesse sido baleado na cabeça e perdido o controle do veículo”. Thiab explicou: “Tentei gesticular para que os sujeitos da Blackwater entendessem que o carro estava se mexendo sozinho e que nós estávamos tentando pará-lo. Estávamos tentando tirar a mulher de lá, mas tivemos de correr em busca de abrigo”.
“Não atirem, por favor!”, Khalaf lembra-se de ter gritado. Mas enquanto ele estava lá de mãos erguidas, Khalaf diz, um atirador do quarto veículo da Blackwater abriu fogo contra a mãe que abraçava o filho e matou-a diante dos olhos de Khalaf e Thiab.”Vi partes da cabeça da mulher voando diante de mim, estouradas”, disse Thiab. “Eles imediatamente abriram fogo pesado contra nós.” Em poucos momentos, segundo Khalaf, foram tantos os disparos feitos contra o carro a partir de “metralhadoras de grande calibre” que o veículo explodiu, mergulhando os corpos no interior em chamas, derretendo a sua carne até transformá-la numa coisa só. “Cada um dos quatro veículos deles abriu fogo pesado em todas as direções, balearam e mataram todos dentro dos carros diante deles e as pessoas que estavam na rua”, recorda-se Thiab. “Quando tudo acabou podíamos ver cerca de quinze carros destruídos, e os cadáveres estavam dispostos na calçada e na rua.” Mais tarde, quando os investigadores americanos perguntaram-lhe por que jamais abriu fogo contra os homens da Blackwater, Khalaf disse-lhes: “Não estou autorizado a disparar, e o meu trabalho é cuidar do trânsito”.
As vítimas foram mais tarde identificadas como Ahmed Hathem al-Rubaie e a sua mãe, Mahasin. O pai de Ahmed, Jawad, tem um irmão, Raad, que trabalhava num hospital próximo para onde as vítimas do tiroteio estavam sendo levadas. “Ele ouviu os disparos”, Jawad lembra-se. “Foi uma batalha, uma luta, uma guerra. E é claro que não lhe ocorreu que minha esposa e filho eram as vítimas – estavam entre as vítimas do incidente.” Raad “foi até o necrotério, e o pessoal responsável disse-lhe que haviam recebido dezesseis corpos depois do incidente daquele dia. Foram todos identificados, ou eram identificáveis, com exceção de dois. Dois corpos completamente carbonizados… Foram colocados em sacolas plásticas pretas”. Raad suspeitou que pudessem ser Ahmed e Mahasin mas, disse ele, “meu coração não queria acreditar naquilo”. Ele e a esposa foram de carro até a praça Nisour e encontraram um sedã branco muito queimado. A placa não estava no veículo,mas a esposa de Raad encontrou um decalque dos números na areia. Raad ligou para Jawad e começou a ler os números da placa, confirmando seus piores temores.
Jawad correu para o necrotério, onde viu os corpos cremados. Identificou a esposa pela arcada dentária e o filho pelos restos de um dos sapatos. Ao todo, segundo Jawad, havia cerca de quarenta buracos de bala no veículo deles. Ele disse que nunca voltou para recuperar o veículo porque queria “que servisse de marco, que relembrasse o doloroso evento causado por pessoas que, supostamente, vieram nos proteger”.
O ataque contra o carro de Ahmed e Mahasin acabou se tornando um tiroteio descontrolado que teve como resultado dezessete iraquianos mortos e mais de vinte feridos.
Depois que o veículo de Ahmed e Mahasin explodiu, disparos contínuos vieram da praça Nisour, enquanto as pessoas fugiam tentando salvar as próprias vidas. Além dos atiradores da Blackwater a bordo dos quatro Mambas, testemunhas dizem que disparos vieram dos helicópteros Little Bird da empresa. “Os helicópteros começaram a disparar contra os carros”, disse Khalaf. “Os helicópteros balearam e mataram o motorista de um Fusca e feriram um passageiro” que escapou “rolando para fora do carro direto para a rua”, disse. As testemunhas descreveram uma cena aterrorizante em que os guardas da Blackwater disparavam indiscriminadamente. “Foi um filme de terror”, disse Khalaf. “Foi catastrófico”, disse Zina Fadhil, uma farmacêutica de 21 anos que sobreviveu ao ataque.” Tanta gente inocente foi morta.”
Outro oficial iraquiano que estava no local, Hussam Abdul Rahman, disse que as pessoas que tentavam fugir de seus veículos eram feitas de alvo. “Quem quer que saísse do carro era baleado imediatamente”, disse.
“Vi mulheres e crianças saltarem dos carros e rastejarem para a rua tentando fugir das balas”, disse o advogado iraquiano Hassan Jabar Salman, que foi atingido quatro vezes nas costas durante o incidente. “Mas mesmo assim os disparos continuaram e muitas delas foram mortas. Vi um menino de cerca de dez anos saltando apavorado de um microônibus – foi atingido na cabeça. Sua mãe estava gritando por ele. Saltou para buscá-lo, e foi morta.”
Salman diz que, quando entrou na praça naquele dia, ele estava dirigindo atrás do comboio da Blackwater quando este parou. Testemunhas dizem ter ouvido uma explosão a distância, muito longe para ser considerada uma ameaça. Ele disse que os guardas o mandaram dar meia-volta no carro e deixar o local. Pouco depois, começou o tiroteio. “Por que eles abriram fogo?”, perguntou.” Não sei dizer. Ninguém – eu repito, ninguém – havia disparado contra eles. Os estrangeiros nos pediram para voltar, e eu estava voltando com meu carro, portanto não havia motivo para eles atirarem.” Ao todo, ele diz, seu carro foi atingido doze vezes, incluindo as quatro balas que lhe perfuraram as costas.
Mohammed Abdul Razzaq e o filho de nove anos, Ali, estavam num veículo imediatamente atrás de Ahmed e Mahasin, as primeiras vítimas naquele dia. “Éramos seis pessoas dentro do carro – eu, meu filho, minha irmã, e os três filhos dela. As quatro crianças estavam no banco de trás”, disse Razzaq. Ele se lembra de que as forças da Blackwater “gesticularam para que parássemos, e foi o que todos nós fizemos… É uma área segura, então pensamos que seria o de sempre: pararíamos um pouco para que o comboio passasse. Pouco depois eles abriram fogo pesado a esmo contra os carros, sem exceção”. Ele disse que o veículo em que estava “foi atingido por cerca de trinta balas. Tudo ficou danificado: o motor, o pára-brisa e os pneus”.
“Quando o tiroteio começou, eu disse a todos que abaixassem a cabeça. Podia ouvir os gritos apavorados das crianças. Quando tudo acabou, ergui a cabeça e ouvi meu sobrinho gritando ‘Ali está morto, Ali está morto!'”
“Meu filho estava sentado atrás de mim”, disse ele.”Foi atingido na cabeça e os seus miolos estavam espalhados por toda a parte traseira do veículo.” Razzaq recordou-se: “Quando o abracei, sua cabeça estava muito ferida, mas o coração ainda batia. Pensei que ainda houvesse chance e corri com ele para o hospital. O médico me contou que ele estava clinicamente morto e que a chance de sobrevivência era muito pequena. Uma hora depois, Ali morreu”. Razzaq, que sobreviveu ao tiroteio, retornou mais tarde à cena e recolheu os pedaços do crânio e cérebro do filho com as mãos, envolveu-os num pano, e levou-os para serem enterrados na cidade sagrada xiita de Najaf. “Ainda posso sentir o cheiro do sangue, sangue do meu filho, nos meus dedos”, disse Razzaq duas semanas após a morte do filho.
Ao todo, o conflito durou aparentemente quinze minutos. Indicativo do quanto as coisas fugiram ao controle em pouco tempo. Oficiais americanos relatam que “um ou mais” dos guardas da Blackwater pediu aos colegas que parassem de atirar. As palavras “cessar fogo” foram proferidas diversas vezes, segundo o depoimento de um oficial de alta patente ao New York Times. “Eles tiveram uma diferença de opinião no local.” Em dado momento, um guarda da Blackwater supostamente teria apontado a arma para outro. “Foi um duelo mexicano”, disse um segurança privado. De acordo com Salman, o advogado iraquiano que estava na praça naquele dia, o guarda da Blackwater gritou para o colega: “Não! Não! Não!”. O advogado foi atingido nas costas enquanto tentava escapar.
Quando o fogo pesado acabou, segundo testemunhas, algum tipo de granada de fumaça foi detonado na praça, quem sabe para dar cobertura à partida dos Mambas da Blackwater, uma prática comum entre os comboios de segurança. Os iraquianos também afirmam que as forças da Blackwater dispararam tiros enquanto se retiravam da praça.”Mesmo enquanto estavam se retirando, disparavam a esmo para abrir caminho entre o tráfego”, disse um oficial iraquiano que testemunhou o tiroteio.
Dentro de poucas horas, o nome da Blackwater se tornaria conhecido por todo o mundo, conforme a notícia do massacre se espalhava. A Blackwater alegou que suas forças foram “atacadas com violência” e que “agiu apropriadamente e de acordo com a lei” e “defendeu com heroísmo vidas americanas numa zona de guerra”. “Os ‘civis’ supostamente atingidos pelos profissionais da Blackwater eram na verdade inimigos armados.” Em menos de 24 horas, os assassinatos na praça Nisour acabariam causando a pior crise diplomática até hoje entre Washington e o regime que havia instalado em Bagdá. Embora as forças da Blackwater estivessem no epicentro de alguns dos momentos mais sangrentos da guerra, a maior parte de suas operações ocorria nas sombras. Quatro anos após as primeiras botas da Blackwater chegarem ao Iraque, a empresa foi arrancada da escuridão. A praça Nisour iria lançar Erik Prince rumo à infâmia internacional. […]
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