sábado, 21 de janeiro de 2023

UMA DEMÊNCIA EUROPEIA

 





O que se está abrindo passo na Europa é uma pura demência. Ficaram loucos? Para compreender a pergunta é necessário explicar o “plano de batalha” histórico da OTAN na Europa durante a Guerra Fria.
UMA DEMÊNCIA EUROPEIA
Há trinta anos a Alemanha reunificou-se graças ao bom sentido e à generosidade de Moscovo. Trinta anos depois, os filhos políticos de Helmut Kohl e netos de quem invadiu a URSS em 1941 estão debatendo o envio de tanques alemães para lutar contra a Rússia. E o combate será na Ucrânia, um dos principais cenários da grande matança desencadeada então pela Alemanha.
Agora chamam-se Leopard esses tanques que marcharão sobre as rodeiras deixadas anos atrás por aqueles Tiger e Panther, sobre os ossos de mais de vinte milhões de “sub-humanos” (untermenschen) soviéticos. Se aquele outubro de 1990, no meio dos faustos da reunificação, alguém tivesse dito que, em uma geração, tanques alemães volveriam a pisar essa terra, ter-lhe-iam tomado por demente. Porém é assim, precisamente, o que vai decidir-se a 20 de janeiro na base de Ramstein (Alemanha), onde se reunirá o chamado Grupo de Contacto da Ucrânia, sob a batuta dos Estados Unidos.
Como os Leopard são alemães, o Governo alemão é quem decide se os tanques que no seu dia vendeu aos seus sócios europeus podem transferir-se ou não à Ucrânia. “Negá-lo seria um acto inamistoso tanto em relação à Polónia como à Ucrânia”, lê-se no diário Handelsblatt.
Verdes e liberais da coligação de governo exigem a luz verde ao envio de tanques. A pressão política, mediática e internacional é intensa e irresistível para o timorato chanceler Social-democrata, Olaf Scholz.
“A conduta russa na guerra parece-se em muitos lugares à guerra de aniquilação das SS e da Wehrmacht contra a União Soviética”, diz o político Verde Jurgen Trittin. “É uma guerra de aniquilação como a praticada pela Alemanha hitleriana sobre o solo soviético e especialmente ucraniano entre 1941 e 1944”, coincide o seu colega democrata-cristão Roderich Kiesewetter. Os lobistas das empresas de armas estão desatados. O ex-embaixador e ex-presidente da Conferência de Segurança de Munique, Wolfgang Ischinger, um dos mais notórios, apela a organizar uma “economia de guerra” na Alemanha.
“A Ucrânia dispara tanta munição em um dia como a que produzimos aqui em meio ano, há que tomar a iniciativa e pedir às empresas europeias de armamento que produzam mais armas e munições, não se trata só de fornecer tanques, trata-se de munição para artilharia, misseis, drones, sistemas de defesa antiaérea e muito mais, porém necessitamos prioridades políticas para que a indústria tenha directrizes”, diz.
Exige-o também o Parlamento Europeu que, a iniciativa dos Verdes, pede a Scholz a criação de um consórcio de países que dispõem de Leopard nos seus exércitos para enviá-los à Ucrânia. “Pedem-no a Finlândia e a Polónia”, explica o eurodeputado verde Reinhardt Butikofer, e não se trata de mandar uns poucos tanques, mas sim de “um apoio à Ucrânia que determine uma mudança qualitativa da situação no campo de batalha”.
O Parlamento Europeu, que a 6 de outubro já pediu o envio de tanques pesados à Ucrânia, exige, simples e claramente, uma vitoriosa batalha de tanques contra a Rússia na Ucrânia. Os filhos de Kohl e netos de quem foi derrotado em Stalingrado, que conforma o governo de coligação alemão, mandando de novo tanques a disparar contra os russos? Esta gente perdeu toda a memória e mesura. Ponto final e definitivo à responsabilidade histórica da Alemanha. Mas há algo ainda mais grave.
O que se está abrindo passo na Europa é uma pura demência. Ficaram loucos? Para compreender a pergunta é necessário explicar o “plano de batalha” histórico da OTAN na Europa durante a Guerra Fria.
Como a URSS tinha superioridade numérica convencional, o plano soviético em caso de guerra era “chegar às portas de Calais em 48 horas” com uma massiva onda de tanques das tropas do Pacto de Varsóvia estacionadas em primeira linha. Para travar isto e dar tempo a que os norte-americanos desembarcassem os seus reforços no continente, o plano ocidental era utilizar as armas nucleares tácticas contra a massa blindada do adversário. Ditas armas foram inventadas pelos Estados Unidos nos finais dos anos cinquenta, primeiro como bombas nucleares e mais tarde como munição nuclear de artilharia e misseis e estacionadas na Europa.
Moscovo seguiu essa esteira, sempre com atraso, da mesma forma em que faria com outros inventos norte-americanos (o míssil intercontinental, os submarinos e a aviação estratégica, os mísseis com cabeças múltiplas, a militarização do espaço etc.) e hoje tem umas 1.900 armas nucleares tácticas. Que faria Rússia se se vê ultrapassada pela grande onda vitoriosa de modernos tanques ocidentais que exige lançar contra ela o Parlamento Europeu?
Com o seu habitual cinismo, os comentadores e especialistas que desfilam pela televisão russa não se escondem: se se limitam a enviar uma dezena de tanques, a medida será anedótica, mas se o subministro fosse massivo, a Rússia fará o mesmo que os ocidentais planeavam para evitar ser esmagados pelos tanques do Pacto de Varsóvia durante a Guerra Fria, dizem. Com tanques alemães disparando de novo contra os russos, confirmar-se-ia, ademais, a duvidosa analogia história usada pelo Kremlin, uma nova “grande guerra patriótica” com a que a elite russa galvaniza a sua população. Entende-se no Ocidente o que tudo isto significa?
O presidente Biden descartava em março, por esse motivo, qualquer subministro à Ucrânia de armas ofensivas. “A ideia de que vamos enviar equipamento ofensivo à Ucrânia, com aviões e tanques, pilotos e tripulações norte-americanas chama-se terceira guerra mundial”, disse então. Em maio, o mesmo Biden escrevia no The New York Times que “não estamos animando ou possibilitando à Ucrânia para que ataque mais além das suas fronteiras”. E ainda em junho o presidente francês, Emmanuel Macron, confirmava: “Não vamos entrar em guerra, portanto decidimos não fornecer certas armas, entre elas aviões de caça ou tanques”.
Sete meses depois a situação mudou radicalmente: “Não estamos dizendo a Kiev: ‘Não ataques os russos’ (fora do teu território)” colocava o Times de Londres na boca de um porta-voz do governo norte-americano. De momento vão enviar tanques, depois, por que não?, aviões e misseis, e no final soldados, diz a deputada alemã do Die Linke, Sevim Dagdelen, segundo a qual “o envio de armas é o bilhete de entrada na guerra, o bilhete para a terceira guerra mundial”.
Para que a Ucrânia “ganhe” esta guerra e recupere a Crimeia, faz falta que a OTAN entre na guerra. Isso é precisamente o quer o governo de Kiev e os polacos e os bálticos.
“Os ucranianos não querem nenhum cessar fogo, isso só fortalece aos russos, o envio de modernos sistemas de mísseis e tanques é a pré-condição para um armistício”, escreve a deputada ucraniana Inna Sovsun, em uma coluna do Die Welt. Os lobistas do negócio das armas menorizam o assunto: “Ao fornecer tanques a uma nação atacada, ninguém se converte em partícipe da guerra; segundo o direito internacional (…) o medo aos riscos de escalada não deve converter-se em uma espécie de temerosa autodissuação”, diz Ischinger.
O ex-embaixador alemão e lobista da indústria militar não crê que seja necessário integrar a Ucrânia na OTAN. Com a ajuda militar ocidental que tem vindo a receber, “especialmente dos Estados Unidos e do Reino Unido desde 2014, a Ucrânia será, de longe, a potência militar melhor treinada, melhor equipada e mais forte da Europa, prognostica. “A Ucrânia está bem encaminhada em esse sentido”, constata. Porém, vai consentir a Rússia isso? Vai-se conformar, não já Putin, mas sim qualquer dirigente russo, com a perspectiva de ter uma Ucrânia convertida pelo Ocidente em “a potência militar mais forte da Europa,” focada contra ela junto à sua fronteira? Não justificou a sua invasão da Ucrânia o ano passado alegando precisamente isso?
Enquanto, ninguém fala de negociação, a mensagem de que não há que ter medo à escalada, incluso de que esta é a rota para a paz, abre-se caminho com demencial vigor. “A melhor maneira de evitar a confrontação com a Rússia no futuro é ajudar a Ucrânia a rechaçar agora ao invasor”, coincidem o ex-secretário de Defesa Robert Gates e a ex-secretária de Estado Condoleeza Rice, na sua tribuna no The Washington Post de 8 de janeiro.
Erich Vad é um ex-general de brigada que, entre 2006 e 2013, foi assessor de política militar da chanceler alemã Angela Merkel. Em uma entrevista publicada pela revista alemã Emma a 16 de janeiro, este militar acérrimo atlantista dizia o seguinte:
“No Leste da Ucrânia, na zona de Bakhmut [Artiómovsk era o seu nome soviético, que o governo de Kiev cancelou, por “Artiom” Sergeyev, líder bolchevique e fundador da República Soviética de Donetsk durante a guerra civil contra os brancos, e os alemães ucranianos apoiados pelos estrangeiros], os russos avançam claramente. Provavelmente terão conquistado completamente o Donbass em pouco tempo. Só há que ter em conta a superioridade numérica dos russos sobre a Ucrânia. A Rússia pode mobilizar até dois milhões de reservistas. O Ocidente pode enviar 100 blindados Marder e 100 Leopard. Não mudarão a situação militar geral. A questão mais importante é como superar um conflito de este tipo contra uma potência nuclear — por certo, a potência nuclear mais forte do mundo! — sem entrar em uma terceira guerra mundial. E isso é exactamente o que os políticos e jornalistas da Alemanha não estão pensando”.
Rafael Poch — CTXT (18-01-2023)

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