O sinal mais recente desse processo é o anúncio, que
o Kremlin acaba de fazer, da visita do rei do Bahrain Hamad ibn Isa Al Khalifa, que estará no
RESORT russo de Sochi no domingo, para encontrar-se com o presidente Vladimir Putin e assistir ao trecho russo do Campeonato Mundial de Automobilismo da Fórmula 1 da FIA. O governante do Bahrain é braço auxiliar da família real saudita e só a intervenção brutal dos militares sauditas o tem ajudado, até agora, a manter fechada a panela de pressão que é a crescente aspiração por melhor democracia e respeito aos direitos humanos da maioria xiita no país.
O interessante é que ele foi degredado para a casa do cachorro no ocidente, e quase parece que a Rússia vai-se convertendo em local de peregrinação para governantes do Golfo Árabe que, como ele, não está feliz com o modo como o presidente Obama e as políticas dos EUA promovem democracia e respeito aos direitos humanos no Oriente Médio.
Se se tiver de apontar o momento de definição dessa desilusão crescente entre os árabes do Golfo com o governo Obama, foi quando
a ex-secretária de Estado Hillary Clinton desvelou dramaticamente o Século Norte-americano do Pacífico, com o máximo de espalhafato, e a estratégia de "pivô" dos EUA para a Ásia.
Os Clintons aproximam-se da família Bush no Texas, na devoção que manifestam pelos regimes árabes do Golfo, mas a secretária de Estado não foi capaz de antecipar o efeito devastador que sua brilhante ideia do "pivô" teria sobre a moral dos aliados dos EUA no Golfo.
Os autocratas do Golfo Árabe foram tomados por terrível angústia por os EUA estarem a pivotear-se animadamente para a região do Pacífico Asiático, deixando-os entregues aos lobos na região; e por os EUA darem sinais de já não estarem totalmente comprometidos com a sobrevivência dos seus regimes arcaicos.
Àquela altura, a Primavera Árabe e os eventos cataclísmicos que levaram à queda de Hosni Mubarak no Egito,
momento de definição do tal 'pivô' nas estratégias dos EUA para o Oriente Médio, já haviam sacudido a fé que os árabes do Golfo ainda tivessem na lealdade dos EUA como Guardas Pretorianos de seus regimes, especialmente quando começaram a crescer as provas de que Washington se estava posicionando do "lado certo da história" e silenciosamente abraçava a Fraternidade Muçulmana, que, naquele momento, parecia ser a "força vital" emergente no Oriente Médio.
Como se não bastasse, começaram a circular notícias de que a dependência dos EUA do petróleo do Golfo havia começado a diminuir muito, conforme aumentava a produção de gás de xisto, o que, por sua vez, se traduziria em geopolítica como
menor interesse, dos EUA, na sobrevivência das oligarquias do petrodólar da região.
A tese como tal é ridícula, porque o envolvimento dos EUA com os estados do petrodólar nunca foi só como consumidor de petróleo, mas também como negociante no mercado mundial de energia e como exportador de tecnologia, além de tomar parte em todo o processo de reciclar petrodólares, que constitui um pilar chave do sistema bancário e das economias ocidentais. Mas, mesmo assim, a ideia interessava à estratégia de "pivô" de Clinton, e ganhou credibilidade.
Se a queda de Mubarak foi sinal de aviso, a relutância dos EUA em se envolver no movimento dos estados árabes do Golfo para promover "mudança de regime" na Síria acabou por dar a impressão que o poder dos EUA como sustentáculo do Oriente Médio estava entrando em declínio.
Depois veio o engajamento direto dos EUA com o Irã (xiita). Como que esfregando sal nas feridas, Washington engajou Omã, um dos estados do Conselho de Cooperação do Golfo, para atuar como intermediário para discutir os termos do engajamento, mantendo no escuro a Arábia Saudita sobre o que se passava. Por fim, os piores medos dos sauditas pareceram estar-se realizando - com EUA e Irã normalizando suas relações e Riad perdendo espaço como aliado chave de Washington na região do Oriente Médio.
Claro, também se deve considerar o pano de fundo de pós-Guerra Fria contra o qual tudo isso se ia desdobrando - a ilusão que se ia esvaziando, do "momento unipolar" dos EUA, com a emergência já claramente marcada, de um mundo multipolar. Os árabes do Golfo começaram a tatear sobre as possibilidades que um mundo multipolar teria a oferecer para a salvaguarda de seus interesses existenciais. Dito em termos simples, os EUA continuavam a ser o melhor
show na cidade; mas já não eram o único
show na cidade.
Entra a Rússia. A guerra civil na Síria serviu para abrir os olhos dos árabes do Golfo - teste crucial de até que ponto iria Moscou em apoio de seu velho amigo e aliado (embora a Rússia também tivesse seus próprios interesses). A Rússia apareceu em forte contraste com o indisfarçado desinteresse dos EUA, ou absoluta vacilação e relutância, em qualquer projeto para salvar o regime de Mubarak.
Segundo, Moscou sempre desqualificou a Primavera Árabe sem economizar palavras, e mostrou-se extremamente fria quanto às forças que estariam gerando a ideia de transformação democrática no Oriente Médio. Ao contrário, a Rússia sempre se mostrou confortável com a ideia de fazer
NEGÓCIOS com regimes autoritários. De fato, Moscou ridiculariza abertamente o projeto da democracia à moda EUA por onde passe.
Terceiro, a Rússia continua a considerar os Irmãos como "terroristas", e a Fraternidade Muçulmana continua como grupo radical proscrito na lista de itens "a vigiar" dos russos. Os autocratas do Golfo Árabe gostaram imensamente do modo claro, sem meias palavras, como a Rússia vê o Islã político - como anátema no mundo moderno.
Quarto, a Rússia não perdeu tempo para cair nos braços da junta militar que tomou o poder no Cairo depois do golpe patrocinado pelos sauditas, no Egito, em julho do ano passado. Foi movimento que realmente impressionou os sauditas, num momento crucial, quando os norte-americanos ainda pregavam as virtudes da democracia às margens do Nilo. (Pode-se dizer que os russos até forçaram os EUA a repensar sua aproximação com a junta no Cairo, algo que os sauditas não conseguiram só com o próprio peso.)
Quinto, a crise na Ucrânia convenceu os árabes do Golfo de que o DNA russo não mudara e Moscou insistiria naquela linha se seus interesses estivessem em jogo, custasse o que custasse. Dito de outro modo, os árabes do Golfo começaram a brincar com a ideia de tornar a Rússia acionista a sério do bem-estar e da sobrevivência do atual sistema oligárquico arcaico na área deles.
Sexto, a frieza profunda na separação entre EUA e Rússia também é atraente para os árabes do Golfo. Se a separação aprofundar-se mais, ainda melhor. Dito de forma simples, os norte-americanos serão forçados a pensar sobre as sombras russas na região do Golfo, e isso, por sua vez, forçará Washington a assumir renovado interesse no velho sistema de aliança construído sobre o impressionante conjunto de bases militares dos EUA na região.
Por fim, apesar de todo o destaque sobre um entendimento estratégico entre Rússia e Irã vivem a querer ostentar, os árabes do Golfo sabem que aquela relação é incrivelmente complexa, enraizada em animosidades e suspeitas mútuas e sórdidas traições entre as duas potências regionais, que têm longa tradição na história moderna.
A colaboração da Rússia na estratégia de contenção dos EUA contra o Irã nos anos recentes em torno do problema nuclear; a cumplicidade da Rússia com o regime de sanções dos EUA contra o Irã; a aversão que a elite russa tem pelo Irã; os interesses russos e iranianos que se superpõem no Cáspio, no Cáucaso e em regiões da Ásia Central - tudo isso só faz ressaltar a complexidade da relação.
Mais importante, a emergência de uma liderança simpática ao ocidente no Irã e a aceleração no engajamento EUA-Irã sempre preocupariam a Rússia. O espectro que ronda a Rússia é, claro,
o potencial único que tem o Irã para ser instrumento chave no plano de jogo dos EUA para conseguir que a Europa se livre da pesada dependência dos suprimentos de energia russa (o que tem sérias implicações para a liderança trans-Atlântica dos EUA.)
De fato, o Irã é a melhor opção para a Europa na busca para diversificar suas fontes de energia, mediante um eixo na Turquia. Por outro lado, qualquer redução no quanto a Europa depende de energia russa é muito mais que simples redução drástica na renda dos russos; o movimento também priva a Rússia de sua "ferramenta geopolítica" para alavancar políticas europeias.
O ponto é que um Irã integrado com a "comunidade internacional" deixa de ter qualquer convergência de interesses com a Rússia, para desafiar as políticas regionais dos EUA. Cada vez mais, o Irã e os EUA podem até descobrir que estão na mesma página no que diga respeito à segurança e à estabilidade do Iraque (e possivelmente também da Síria). Essa tendência isolaria a Rússia e a forçaria a procurar novas parcerias regionais para se preparar para qualquer eventualidade de uma proximidade estratégica EUA-Irã. Tudo isso para dizer que as relações russo-iranianas estão hoje numa encruzilhada.
Sim, é verdade que não há qualquer possibilidade iminente de criar-se um eixo EUA-Irã, dado que o problema nuclear iraniano ainda não foi resolvido e não há sinais de os EUA virem a dar um "salto de fé" na direção do Irã. Os
lobbies saudita e israelense trabalham sem parar em Washington para fazer gorar qualquer acordo nuclear, e os interesses dos EUA também são muito profundos e extensivos nos estados do Golfo Árabe, o que torna extremamente difícil para o atual governo na Casa Branca cooptar abertamente o Irã como aliado no Oriente Médio em
FUTURO próximo.
Tudo isso posto, Moscou também não quer saber de correr riscos. Está fazendo aberturas na direção dos estados do Golfo Árabe e conta desesperadamente com que aqueles estados sejam atraídos pelas possibilidades que uma ordem mundial multipolar oferece.
Moscou conseguiu encontrar interlocutor firme no rei Abdullah da Jordânia. Ano passado, Abdullah visitou Moscou; esse ano já lá esteve duas vezes (incluindo o dia 2/10); e ainda faltam dois meses para uma terceira visita. Entre uma visita e outra, Abdullah recebeu em Amã um
importante visitante russo - o líder checheno Ramzan Kadyrov.
Interessante: Moscou sabe perfeitamente que não há como cogitar do fim da participação da Jordânia na agenda de "mudança de regime" liderada pelos sauditas contra a Síria, que a Jordânia é fritada pequena para uma grande potência como a Rússia. Mesmo assim continua a ser país interessante, porque pode servir para levar Moscou até a liderança saudita; e Moscou sempre poderá encontrar serventia para os laços que Abdullah mantém com o ocidente. Assim afinal se compreende que está em curso um
diálogo denso entre Abdullah e Putin baseado em
realpolitik para um acerto entre os interesses desses dois lados, num espírito de pragmatismo.
O mais importante é que a Jordânia tem laços estreitos com Israel e, dados os crescentes contatos entre sauditas e israelenses, Moscou há de ter visto que há espaço para desenvolver um campo comum, pelo menos até certo ponto, sobre a base de uma antipatia/desilusão partilhada entre todos esses quatro protagonistas ante as políticas regionais dos EUA.
O Egito, sem dúvida, cabe também nesse paradigma. Os laços russos-egípcios estão-se desenvolvendo rapidamente, e a visita do presidente Abdel Fattah al-Sisi a Moscou em agosto foi interpretada como
'recado' aos EUA, de que o Cairo tem opções estratégicas num cenário multipolar.
Mas do ponto de vista russo, o peixe grande que interessa é a Arábia Saudita. Moscou não deixou pedra sem examinar nos últimos anos, mesmo ante a rejeição diplomática que recebeu de Riad, tentando
energizar o relacionamento com vista a convertê-lo, adiante, em parceria, mas os sauditas mantiveram-se muito lentos - pelo menos até agora. A guerra civil na Síria manifesta uma contradição aguda. Mas o coração da matéria é que os sauditas continuam muito longe de desistir de sua aliança estratégica com os EUA.
Os sauditas não perdem a esperança de que o governo Obama possa ser contido nessa trilha para fazer um acordo com o Irã, antes do prazo fatal, em novembro. Se nenhum acordo frutificar e no meio tempo se o Senado dos EUA mudar de mãos e passar a ser controlado pelos Republicanos, o engajamento EUA-Irã pode não acrescentar grande coisa e, de fato, é possível até que as tensões aumentem entre os dois velhos adversários. A estratégia saudita, em resumo, é, de algum modo, nada fazer durante o resto do governo Obama, até final de 2016.
Mas as coisas podem mudar dramaticamente se houver um acordo EUA-Irã sobre a questão nuclear. Ambas Moscou e Riad teriam muito a perder se a integração do Irã, no ocidente, começasse em sentido real. (Israel também perderia muito.) Se acontecer, o Oriente Médio entrará no mundo multipolar.
Mas há muitíssimos "se" e "mas" implícitos nesse cenário. Muito dependerá de como vier a ser a guerra de Obama contra o Estado Islâmico. A grande questão aqui é: o que acontece na sequência, se o Estado Islâmico se impuser e levar a luta para dentro da Arábia Saudita?
Afinal, como movimento que é de "neo-wahhabismo", o alvo chave do Estado Islâmico sempre será a Arábia Saudita, não o Ocidente como tal. A estratégia do EI é de algum modo provocar os EUA para que intervenham militarmente, para que o EI possa surfar a onda dos sentimentos antiamericanos que se espalham no Oriente Médio muçulmano, a qual, por sua vez, sempre atrairá novos recrutas e
MAIS DINHEIRO dos estados do Golfo para a causa do Califa.******