Estados Unidos se preparam para ataque à Síria, mas insistem em dizer que ação não seria "novo Iraque"
Enquanto os Estados Unidos se preparam para um possível ataque à Síria, parte significativa da comunidade internacional exige uma aprovação do Conselho de Segurança da ONU antes de qualquer movimentação. O próprio governo norte-americano afirma que a ação não será um "novo Iraque". Mas, como as Nações Unidas reagem ao uso de armas químicas? Ela pode aprovar alguma ação mais enérgica?
Roque Monteleone Neto, médico geneticista, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), perito e especialista em armas biológicas e desarmamento e não-proliferação - e ex-perito da ONU - , faz uma cronologia sobre o que aconteceu com o Iraque, no final da década passada, e mostra até onde chegou a influência das Nações Unidas nos ataques contra o país.
21 de março de 1986 - O Presidente do Conselho de Segurança da ONU, na sua 2667ª sessão, faz um comunicado dizendo que seus membros estão "profundamente preocupados" pela conclusão unânime de especialistas sobre o uso de armas químicas contra tropas iranianas pelo exército iraquiano. Membros do Conselho condenam o uso de armas químicas, no que consideram uma clara violação do Protocolo de Genebra de 1925, que proíbe o uso dessas armas em conflitos armados entre Estados. Os EUA foram o único membro do Conselho de Segurança que votou contra este comunicado.
[Em agosto de 2013, a revista "Foreign Policy" divulgou arquivos desclassificados da CIA que detalham a ajuda norte-americana ao governo iraquiano para o uso de armas químicas contra o Irã, através do fornecimento de imagens de satélite indicando a localização das tropas iranianas.]
2 de agosto de 1990 - Iraque invade o Kuwait.
8 de agosto de 1990 - Iraque declara a incorporação "eterna" do Kuwait.
Agosto a novembro de 1990 - O Conselho de Segurança da ONU adota 12 resoluções sobre vários aspectos desta situação, sob a égide do Capítulo VII da Carta das Nações. Durante este período, na Assembléia Geral, a grande maioria de Estados Membros condenou a invasão e ocupação do Kuwait, chamando para uma restauração do governo Kuwaitiano e o respeito por sua integridade internacional.
20 de novembro de 1990 - O Conselho de Segurança adota a Resolução 678, que, entre ouras medidas, autoriza os Estados Membros a utilizarem todos os meios necessários para sustentar e implementar todas as resoluções já adotadas caso o Iraque não se retirasse do Kuwait até 15 de janeiro de 1991. Uma coalizão militar de países membros se formou, incluindo EUA, Grã Bretanha, Irlanda, França e outros países europeus, alguns países árabes e muitos outros Estados membros. Eles enviaram tropas para a Arábia Saudita e outros Estados do Golfo Pérsico apara garantirem a implementação das decisões do Conselho de Segurança.
28 de fevereiro de 1991 - Após uma campanha de bombardeio aéreo e de uma ofensiva terrestre, as forças iraquianas abandonam o Kuwait.
3 de abril de 1991 - O Conselho de Segurança adota a Resolução 687, que impõe inúmeras obrigações ao Iraque, entre elas: o monitoramento de uma zona desmilitarizada entre o Iraque e o Kuwait; a demarcação de uma fronteira entre esses países; a documentação e desmantelamento dos programas iraquianos para desenvolver e adquirir armas de destruição em massa e de mísseis de longo alcance, através de inspeções rigorosas e sem aviso prévio em qualquer lugar do território iraquiano; o estabelecimento de um fundo de compensação para as perdas e danos causados pelo Iraque ao Kuwait e para todos os indivíduos e empresas afetados pela invasão; o estabelecimento de ações humanitárias para o transito de repatriação de refugiados e deslocados pelo conflito, inclusive a troca de venda de petróleo por alimentos, remédios e outros itens de uso civil; e o estabelecimento de um grupo de relatores sobre a situação dos direitos humanos no Kuwait e no Iraque.
6 de abril de 1991 - O Iraque aceita os termos da Resolução 687.
18 de abril de 1991 - O Iraque apresenta oficialmente a primeira declaração sobre os programas de armas de destruição em massa (nucleares, químicas e biológicas), inclusive de mísseis balísticos de alcance superior a 150 km. Essa e outras declarações posteriores contém uma descrição dos programas, locais, tipos de armas desenvolvidos e pessoal envolvido (civil e militar), entre outras informações relevantes.
16 de dezembro de 1998 - A UNSCOM (Comissão Especial das Nações Unidas) retira-se do Iraque. Os EUA e Grã Bretanha bombardeiam [Operação Desert Fox] o Iraque por 4 dias consecutivos sob a justificativa de o Iraque não cumprir as resoluções do Conselho de Segurança e não cooperar com a UNSCOM.
30 de janeiro de 1999 - O Presidente do Conselho de Segurança da ONU cria um painel de revisão das relações entre as Nações Unidas e o Iraque relacionado com o desarmamento e questões sobre o atual e futuro do monitoramento contínuo e verificação das ações.
17 de dezembro de 1999 - O Conselho de Segurança aceita a recomendação do Painel de revisão das relações entre as Nações Unidas e o Iraque e cria a UNMOVIC (Comissão das Nações Unidas de Vigilância, Verificação e Inspeção), em substituição à UNSCOM.
7 de março de 2003 - A UNMOVIC apresenta um relatório sobre a cooperação do Iraque ao Conselho de Segurança, que é interpretado pelos EUA e Grã Bretanha como um indicativo de violação da Resolução 697 pelo Iraque, no entanto a nova resolução que autorizaria o uso da força para garantir o cumprimento não obteve consenso dos membros permanentes do Conselho de Segurança.
20 de março de 2003 - EUA e Grã Bretanha organizaram a chamada "coalition of the willing" e invadem o Iraque, sob o pretexto de que o Iraque ainda possuía armas de destruição em massa.
Abril de 2003 - É criado o "Iraq Survey Group-ISG", composto por peritos americanos, ingleses e australianos, para agirem de forma independente da linha de comando militar, reportando-se diretamente ao Ministro da Defesa americano e com a incumbência de encontrarem armas de destruição em massa no Iraque, que foi a razão primária da invasão.
30 de setembro de 2004 - O ISG apresenta o seu relatório final, também chamado de "Duefler Report", que não apresenta nenhuma evidência sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque.
Janeiro de 2005 - O ISG reitera as conclusões do relatório e expressa que, embora não tenha achado "evidência de que Saddam possuía estoques de armas de destruição em massa em 2003, reconhece a possibilidade de que algumas armas existam no Iraque, apesar de não serem de capacidade militar significante."
Como se pode depreender dos fatos acima apontados, existiram dois tipos de intervenção no Iraque:
1) Uma autorizada pelo Conselho de Segurança em novembro de 1990, tendo como motivo principal ocupação do Kuwait pelo Iraque e o conseqüente não cumprimento de uma série de resoluções que instavam o governo iraquiano a cessar a ocupação. Convém lembrar que as resoluções do Conselho de Segurança da ONU impõem obrigações aos Estados Membros, especialmente quando tomadas sob a égide do Capítulo VII da Carta das Nações, que por sua vez, quando não cumpridas desencadeia sanções econômicas e/ou intervenção militar sob a bandeira das Nações Unidas.
2) A segunda intervenção deu-se em março de 2003, por uma coalizão de países liderados pelos EUA e Grã Bretanha, porém sem a autorização expressa do Conselho de Segurança da ONU, motivados pelo seu entendimento que indicava a existência de armas de destruição em massa no Iraque, fato posteriormente não corroborado pelo próprio grupo de busca criado pelos países da coalizão.
Portanto, o Conselho de Segurança da ONU, em nenhuma oportunidade, decretou uma intervenção militar em um Estado membro, baseado na suposta existência de armas de destruição em massa. Evidentemente esta situação muda radicalmente se ficar demonstrado que houve uso pelo Estado Membro desse tipo de arma ou se o uso foi feito por um Estado Parte da Convenção de Proibição de Armas Químicas-CPAQ.
A Síria é um Estado Parte do Protocolo de Genebra (1925), desde 17 de dezembro de 1968, aceitando, portanto a proibição do uso de armas químicas e biológicas em conflitos armados, mas não é um Estado Parte da Convenção de Proibição de Armas Químicas, assim como Israel e Mianmar (assinaram, mas não ratificaram) e Angola, Egito, Coréia do Norte, Sudão do Sul (que não assinaram e não anuíram). De acordo com a Convenção de Armas Químicas, o uso alegado por um Estado Não Membro é investigado através de um mecanismo desencadeado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas. É importante ressaltar que a Convenção de Proibição de Armas Químicas entrou em vigor em 29 de abril de 1997.
Esse mecanismo de investigação foi estabelecido em novembro de 1987 pela Assembléia Geral (Resolução A/Res/42/37C) conferindo ao Secretário Geral da ONU poderes para investigar relatos trazidos à sua consideração por qualquer Estado Membro de possível uso de armas químicas, biológicas ou tóxicas, com o objetivo de apurar os fatos trazidos à sua consideração. Com a entrada em vigor da CPAQ, criou-se a Organização para a Proibição de Armas Químicas-OPAQ, com sede em Haia (Holanda) e é o organismo internacional pela implementação dos seus dispositivos, inclusive as investigações de uso alegado de armas químicas entre Estados Parte da Convenção. No caso de alegações relacionadas com o uso de armas químicas levadas ao Secretário Geral envolvendo um Estado não Parte da CPAQ, a OPAQ é obrigada a cooperar com o Secretário Geral, de acordo com a Parte XI, parágrafo 27 do Anexo de Verificação e Artigo II.2(c) do Acordo de Relações entre as Nações Unidas e a OPAQ, de 11 de outubro de 2001.
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=d6f1dd034aabde7657e6680444ceff62&cod=12392
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